Quando Francesco estava perto de comemorar o seu octogésimo ano de vida, os desafios de seu envelhecimento eram por demais evidentes. Problemas associados com a locomoção, incapaz de tomar decisões nos negócios de vinhos, tornava-se um pesado fardo e optara-se por solucionar a questão sem ferir muito a suscetibilidade dos filhos e familiares mais chegados. Agora, o terceiro piso da casa na Rua do Pombal era o seu mundo, os seus aposentos, o seu trono. Como nos seus tempos de casado, conservava parte do seu vasto espólio, que então estava espalhado por outras quintas da Madeira. Cómodas cheia de imensos objetos em prata, cama com dossel, alta quanto baste para que se pudesse articular entre o leito e o soalho corrido, de madeira escovada e encerada periodicamente. O seu isolamento acentuava-se a ponto de não conseguir descer as longas escadarias que vinham ter ao grande salão das refeições e, onde uma bifurcação de degraus polidos e corrimões da casa colonial, onde as criadas suavam as estopinhas para mantê-las imaculadas. Os seus filhos preocupados com a situação, optaram então, por arranjar uma vigilante que pudesse minorar o efeito da sua dependência e solidão. Os anos não perdoam, e oitenta não é para qualquer um! Depois de uma vida de labuta, de ainda muito cedo ter enviuvado e gerido todo o seu pequeno império na cidade. Na época, após anúncios num jornal da região, a escolha incidiu em Maria, como a preferida, havendo um consenso de que a jovem senhora esbelta, com reconhecidos méritos fosse a escolhida,, tanto pela sua simpatia, cartas de recomendação e fino trato bem como e, levada cultura que demonstrara ao falar fluentemente diversas línguas. Defeitos eram irrelevantes para a altura! Haveria que optar-se rapidamente por um final que agradasse a Gregos e Troianos, aliviando assim a carga familiar em particular, pois não era fácil mantê-lo sob vigilância as vinte e quatro horas do dia. Após a resolução e da distribuição das tarefas que Maria teria de desempenhar, começaram a surgir no horizonte, nuvens de uma borrasca.
Primeiro foi a questão do seu nome! Exigia ser tratada por Mary, pois o seu anterior patrão, importante negociante britânico assim a obsequiara na sua estada na Cidade do Cabo. Claro que Francesco, embora fosse descendência de linhagem italiana, que vindos de Génova, um dia aportara à Ilha da Madeira. Não queria descer na sua posição, e muito menos dar o braço a torcer contra todos os que lhe fariam frente ou invejassem o seu posto de trabalho.
Após se familiarizar com a restante equipa que vivia na mesma casa, as conversas sobre o Cabo, o Apartheid ou Mandela, eram de todo evitadas! Na altura, aos britânicos, exigia-se lealdade e correção, aprumo e obediência, fatores primordiais para se ser elogiada e considerada uma miss qualquer coisa! Já tinha bastado o caso Gandhi, agora de novo explorado pelo fato de a India se encontrar em conflito com a República Portuguesa, devidos aos nossos antigos territórios, enclaves que nós acabávamos de perder, e mais; eramos corridos, escorraçados e abandonados pelo governo de então. Era demasiada humilhação!
Mas dizia eu, Maria ou se preferirem Mary, tinha nariz empinado, manias de mandona, como se a comparassem ao próprio rochedo de Gibraltar e dura de roer! Claro que não caiu no goto das outras empregadas, meras marias sem títulos nem brazão, fossem eles de nobreza duvidosa ou cartas de recomendações. Dizia-se na época que Mary era irrascível, difícil e presunçosa q.b.! Cagança como se designava este tipo de personalidade, convenhamos que não lhe faltava! Quem quisesse conspirar, também não. Até se descobrir, após ser apanhada a desviar as economias de Francesco, as joias da coroa del signore, que a tinha auxiliado e dado guarida. Ela não passava de uma caçadora de tesouros, e relíquias decadentes que a pudesse em momentos difíceis, se manter a salvo com o seu pé de meia. Quando passava por mim, tinha sempre aquele olhar de repreensão, tentando dar-me lições de ”very british mania”, com ares de nani, o que eu odiava! Tratava o seu amo e senhor, uma espécie de papá e amante, ansiava ainda em tornar-se uma futura Signora Mary di Bianchi. Mas o seu empinado nariz, não iria durar mais do que dois anos, até ao falecimento de Francesco. Sem a sua presença, os Di Bianchi prescindiram da sua colaboração e restou-lhe a porta principal para sair airosamente da situação. Teria de novo, de descobrir novos tesouros, novas oportunidades para demonstrar os seus dotes de pirataria.
Estava eu de viagem do Funchal para Lisboa, a bordo dum paquete, quando a reconheci debruçada na amurada, fazendo passar-se por uma “true lady” conquistadora de corações, de fortunas de velhinhos ou novos ricos que a sustentasse e lhe desse status perante os outros. Mary não passara de um embuste, uma farsa italiana, ignorada pelas ruas da amargura!